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18/10/2017

Ignoto Deo

- Amor, o que pensas de Deus? 
Ela sorriu.
Rebaixou a roupa do corpo 
Humilhou a roupa da cama.
E enviámos anjos como emissários
À nossa imagem e semelhança.
Enviámos demónios como corolários
Da abastança.
E obrigámos Deus a ser um animal
Da nossa espécie.



Paulo Anes

31/07/2017

No Barrocal da minha infância


No Barrocal 
Da minha infância
O Douro imperial
Fecundo lá ao fundo
Acoitava de paixão e abundância
A Barragem menina
(Que o animava e anima)
Reclamando ecos de amor profundo
P'las longas arribas acima.

Deus e o Diabo?
Era igual.

Nos céus reinavam o grifo
O falcão-peregrino, 
A águia-real.
Na terra... 
Ora a igreja, 
Ora a sacristia
Ora a missa que o padre Pinto dizia
Ora a Biblia esculpida
Nas escarpas abruptas, 
Dos morros excessivos.
(Isto, claro, nos meus sentidos)

O Orlando estudava
O Adelino corria
O Morais orientava
E a Alda Maria
O colo cheio de graça 
Que tão bem sabia.

Crianças da minha idade 
Não sei se havia.
Era o Lázaro de regresso à vida
Na loucura enternecida do dia a dia
Era não haver o que não havia
Como, por exemplo, a palavra saudade...

E era tudo tão verdade.

Paulo Anes

26/07/2017

Deus me perdoe

Não padeces de dor
Não és tocado pela vingança
Não te abate a fadiga
Não te ameaça o perigo
Não és sensível a preces e orações
Não podes evitar sermões
Que abatem o teu próprio templo
Nem as guerras
As perdas
E essas merdas

Não podes ferir
Ser mau exemplo
Pecar
Ou mentir
Magoar
Gargalhar
Ou rir
Fracassar
Ser culpado
Estúpido
Ou julgado

Não podes não ser
A não ser imperfeito
Não podes morrer
Ser injusto
Ou ter defeito
Não podes sentir o pânico feito
De cilício de gente
Que vive, vivia
Sofre, sofria

E custe o que não te custar
Não podes trabalhar
Desde o sexto dia

Ó Deus todo poderoso, vá lá!...,
Como podes refrear a vontade humana
Se o que podes não dá
Sequer para uma semana?


Paulo Anes

22/07/2017

O dia inteiro à espera

O dia inteiro à espera
Do que é preciso que não doa muito.
Falta um ombro 
Onde a cabeça em balada
Aprenda a saber  
E aprenda a saber deixar de saber. 

Ombro de infinito e infâmia,
Que me liberte da ternura das palavras 
Que absolvem os homens;
Que ensine a dor como fonte,
O crime como inevitável, 
A consciência do crime como necessidade...

Sem bençãos que amoleçam
Nem lágrimas que me aparem os golpes.



Paulo Anes

20/07/2017

Pastor de limbos

Era pastor de limbos
E, aos domingos,
Predicava histórias do futuro
À mais pesada da lágrimas 

Gentes de todo o lado
Entretidas com os cheiros dos sons
Que há nas ervas do orvalho,
Encontravam-se na morte das marés
Queimada aos pés
Da areia quente.

E quando chegavam domingos
O pastor de limbos
Nas suas fúteis andanças
Convertia as lágrimas
E a mais inútil das crianças
Ao que ainda não tinha sido inventado:

Vestir todo o amor 
No caminho esfarrapado. 



Paulo Anes

28/02/2017

A sumir

Se fossemos a sumir  
Do que morremos?
Se fossemos a mar ?
Amar alto.

Se fossemos, vamos.
Conversaremos durante a viagem.



Paulo Anes

09/02/2017

Mãe que ou teu?

Mãe...
Onde está
O menino
Do mundo a haver
Que das histórias de encantar
Te ouvi contar?


Mãe,..
O menino morreu?

Mãe...
O menino sou eu?



Paulo Anes

06/02/2017

Desfiando ladainhas

Ouço - diz-se - do vento sueste

Pecados genuínos imortais,
Virtudes, defeitos teologais,
Quimeras no dorso de uma peste.

Ouço colos-ladainhas
Desfiando terços ao mugir da aurora;
Barões que pegam p'los cornos rainhas
E uma dor-mor que implora
Não por ouvidos ais
Mas por lágrimas reais.

Ouço, também,
(Santa mãe!)
Hálitos empestados 
de ciprestes
Que levam os dias a incomodar a vida,
Que levam as noites a decepar os mestres.

E de tanto ouvir, digo eu,

Ouço, enfim, um livro aberto;
Órfão único do Invisível,

Irmão gémeo do Impossível,
Filho incógnito do Incerto.


Paulo Anes

02/02/2017

O fumo de um cigarro triste

O propósito
É não ter propósito nenhum
Emprestar ao tempo a idade
Num qualquer lugar comum
Onde por acaso sumiste
Onde atirei à eternidade
O fumo de um cigarro triste.



Paulo Anes

20/01/2017

Andarilho


A resina arde? A sombra do herói
É mais heróica que o herói?
A dor dói?
O amor é um crime?
O pecado redime?


Andarilho 

Maravilhado e lento por fora
Condenado a solene por dentro.


Paulo Anes