Translate

18/12/2015

Oração

Noite cheia dos dias nãos,
Cheia de lua e de calma,
Afaga ao menos as mãos 
A quem não tocas na alma.

Que ao menos a terra sangrada
Pela dor que por ela passe,
Com as dores do parto animada,
Parta o frio e disfarce.

Mãe, já que a dor é escabrosa,
E o medo também vem,
Dá-me ao menos a força
De a não mostrar a ninguém.


Paulo Anes


11/11/2015

De que é que tem sede esta alma?

Procuro
Por alguém que espera
Outrem de mim mesmo
Que de tanto esperar
Para aquém de quente
Já não sei quem sente
Qual de nós é ausente


Espero
Por outrem que procura
Alguém de mim mesmo
Que me quis para lá
Qual de quê já não sei
Quem de qual ou de crer
Quando em nós e não quanto
Tanto quanto procura
O que não sabe onde é
Ninguém lhe disse o que foi
Nem se lembra onde fica.

Paulo Anes

02/11/2015

Cansaço

Cansaço 
Blasfemei estradas 
Nos teus olhos suados 
De mulher estandarte e veias aladas. 

Virgem mãe dos pobres coitados, 
Das bocas sem palavras, 
Dos passeios abandonados, 
Das paixões caladas. 

Virgem sem fé 
Dos infernos a sorrir, 
Virgem-ré 
No avesso da minha calma, 
Dos céus a mentir, 
Tão pálida , demente 
Tão longe da minha alma. 

Virgem insegura 
Dos medos arrastados, 
Diz-me por quem vou?

 Insultei o universo, 
Ajoelhei-me contra os céus 
Por quem sou 
E uma lágrima ligeira 
Caiu pela terra inteira 
E voou.

Paulo Anes

20/10/2015

Letes

Lento o amor esquece e a alegria
É como uma história de outrem.
Passa a noite fria
Na nossa nostalgia,
Passa a nostalgia,
Toca a desgraça
E tudo o que passa,
Toca em ninguém.


Paulo Anes

16/10/2015

Luanda

Luanda...
Abraça em muitas fés
O enterro de um destino
Descalço, roto, sem pés.

Luanda
Kizombemos nas Ingombotas
Porque a liberdade de um homem
Não se mede por sinas tortas.

Luanda
Rainha Njinga, rainha lua 
Do Cacuaco a Cabo Ledo
Há um miradouro que amua
...................................................................

Luanda...
Encarcerada, a decantar,
És poema a ser ... a declamar.




Paulo Anes

14/10/2015

A divisão do homem pelo óbvio

Tudo cai
A sombra do chapéu que cega
O politico que não afirma nem nega
A adoração sem escrúpulos
O hálito empestado das palavras
O intelectual do Nobel a haver
O menino dos músculos a ter
A vírgula feroz
Sujeita ao predicado
E a vizinha do lado
Dedilhando o terço
No tédio do seu próprio berço

Tudo cai
A certeza omnipotente
O que se sente
O que se não sente
O que se consente
A danação clandestina,
A posse de todas as posses
A senhora fina
As portas em horas de fecho
E o que se parte antes de partir
Para que o desenho sem lápis
Possa parir

Tudo cai
Carabinas e gestos fechados
Canteiros que ninguém plantou
Ângulos rectos; desamparados
Amantes de não sei quem amou


Paulo Anes

11/10/2015

Saudade

Não vivo contra o tempo apesar
Do tédio de o ter e não ter,
Vivo enfadado a escusar
A vidinha que não sabe morrer.

Ó cilício vivo
Não me deixo a esquecer,
Não me larga o sentimento,
Algoz em telúrico assento,
De uma memória por viver...

E as palavras, meu amor
Não sabem amar.
As palavras têm varizes 
Que nos impedem de caminhar.


Paulo Anes

09/10/2015

De pé...

Esta velha angústia
Deu lugar a um novo arranjo
E eu que não sou um anjo
Ou só um anjo caído
Um monstro ferido
Coxo e moído
Que sou como sou
Como quem é
Como é…

Eu…
Hei-de morrer p'lo meu pé.



Paulo Anes

06/10/2015

São Vicente de Fora, entre...

Acordei com trombetas nas albardas,
Cardos assimétricos aos pulos,
Asas de mosquitos abelhudos...

Zzzzz...
Zum, zune… foda-se.

Viagens de tinteiros nebulosos
Tutores e aprendizes
Nus ranhosos narizes...

Zzzzz...
Zum, zute... merda.

São Vicente de Fora, entre...
Venha conhecer um filho
Da pátria ausente.



Paulo Anes

04/10/2015

Adivinha...

Ai, Maria!...
Se soubesses que o amor dói
Não amarias ninguém,
Nem eu, sequer, viveria...
Ficaríamos aquém.

Pensa comigo...

A vida é solidão
A embutir sol no coração.

Pois é Maria

Se soubesses que o amor vai,
Eu não iriaficaria,
Seria outro ou outrem
E tu amarias ninguém.

Chora Maria, chora!...

P'ra onde eu vou?...
Oh Maria, vou-me embora!

Ai Maria!...
Se soubesses e cantasses,

Eu não contaria a ninguém,
Se eu cantasse e não contasse,
Iria, partiria,
Seria eu, não outrem,
E tu amarias também.


Paulo Anes

25/09/2015

Fechado num cadinho sagrado

Vate de um fado soturno
Ida impossível de não ir
Se é sangue que sangro e espumo,
Se é caminho ou só carpir.

Onde és incerteza que espero?
Mulher certa ... é incerto sair?
Quero quanto quando quero?

Se te ouço,
Assento bravo e arroto a plainar...
Se balouço
O coração é-me um estranho a estranhar

Assim vou ,
Utopia que amuou
Báculo,
Tabernáculo,
Assombro dos serões,
Às portas fechadas de par em par;
Escoliose das procissões
Sem Andor nem andar.

Ó que eu sou tudo
Sou português.
Um cadinho no céu,
Outro no definitivo talvez.


Paulo Anes

22/09/2015

Parto de fé

Parto à procura
Do que quer que seja
E o que quer que seja
Onde quer que esteja
Está sempre aqui.


Paulo Anes

20/09/2015

Evade-se o lugar em que faleço

Não vivo,
Veto
Vou
Não acordo
Amanheço...
Letra à letra desfalcado,
Dilúvio desbocado
Em que esmoreço.

Não peso,
Penso,

Esqueço...
Não durmo
Anoiteço.
Evade-se o lugar
Em que faleço.

E do que não faço e refaço
Estoira agreste o chicote em que renasço.


Paulo Anes

18/09/2015

Aperto

Como voltar ao caminho
Se a maré não dá sossego,
Se os brinquedos de menino
Arderam em lume cego?

Quanto mais canto mais sofro
Fadigas, piras esfaimadas;
Quanto mais longe mais gosto,
Ó ocas bocas espancadas.

O  agosto manca, peca fechado.
- À mãezinha?... És o sol p'ra ela.
Mas o fado fardo pesado
Não pesa sair dessa cela.

O dia é inverno; alonga-se a faina,
A dor não desfaz… tampouco amaina.



Paulo Anes

17/09/2015

Trota o frio

Trota o frio…
O ciúme é o amor sem brio.
Sonhei que o céu era talhado
Numa pedra roubada ao fado.

Sonhei como nascia o sol
E o sol não nascia amanhã;
No tédio vi a estátua mole
Da mãe ausente ou da meia-irmã.

Sonhei, meu bom amigo,
Que sem a luz não há trigo,
Que a lava derretida
Sucumbia na descida.

Trota o frio…
A geada que corta é  cio.
A vida acolhe o invisível
E o amor é aquele beijo impossível.

A barca que me bateu à porta
É a geada íntima que corta.


Paulo Anes

Ode à Incerteza

Amo as portas abertas
Ao medo que o caminho tem
Do próprio ventre. O arvoredo passa.
Ao léu as folhas falavam.

Palpito inquieto do nunca
Ao não faço barulho no que há.
Amo os montes e as ervas e o mar
E o vento aos pés.

Aceito, pois, com incerteza assídua,
Carregar o esforço de que é fraqueza
Dar hordas de grandezas à vida
Nos jardins sem escombros.

Facilmente ancoramos leves,
Aparte o nós que nada longe no mundo lá
Que sossega a fraqueza e serve 
A força que nos serve.

Em mim, canto a esfinge 
A ideia de ondas que não afogam.
Canto o arvoredo que passa
Ao léu das folhas que falavam.


Paulo Anes

16/09/2015

Ode ao lirismo que há na minha raiva

Vento de lirismo desenfreado:
Devora tudo, leva tudo. Tu...
Ó terno medo cor da rosa
A corar ao tédio
Na luz da noite que me acompanha.
Não há tortura. 
Só os ávidos olhos.

Embalo-me.
Embalo uma vida-ela-própria.
Trago-a tão terna de ser daqui,
 Plantada em alodiais  
Que são do jeito de que assim é.

(E quando assim não é, não é.
Ou é anão ou Noé. 
É sim. Eu sei.)

À consciência dos livres, ao inesperado,
Servem inícios, grandezas, vitórias.
Aqui todos os escravos, e são são todos,
Pegam-se à raiva que há na minha raiva.

E a terra do mel doce e ateu revela ao céu 
Como foi o futuro.




Paulo Anes

14/09/2015

Fraqueza

Neste universo inverso
Não há uma única estrela,
Nem uma palavra, um verso...
Apenas e só uma vela.

Como num fútil banquete
Onde ninguém se alimenta,
Cindida do tarro e da mesa,
Transborda de dor alheia
A minha alma de fraqueza.


Paulo Anes

13/09/2015

Pressentimento

Ouço-me empedernido nas costas
Viro-me e não ouço nada de frente.
Estranho confuso e nulo
E aflito caio como quem pressente
Para cima de tudo o que me acontece
E acontece à gente.

Sorrio como quem não vê.
Mendigo como náuseas fora de prazo.
Andarilho neste quarto aos papéis.

Paulo Anes

11/09/2015

Absinto muito


O hálito empestado da vaidade,
Os carris da modernidade antiga,
A fadiga,
A poupança compulsiva da verdade,

O “pronto está bem assim”
A cobardia de viver amanhã
Sempre amanhã
"Qu'isto hoje não está p'ra mim"

A impotente esperança sem cor,
Nem pudor.
O medo que o futuro traz
Apegado
Ao passado
Invulnerável, mas incapaz.

E o sofrimento bolsado,
Insaciável, insaciado,
Baleado
De trás para a frente
Da frente para trás
P’la gente que não leva
Da gente que não traz?

E no meio do que fala
Em tudo isto
O que é que se faz?
Que é da vida?

Aqueço um cigarro, 
Acendo o céu da boca.
A vida, essa?!...
Ah!... Continua sempre pouca. 

Paulo Anes

27/08/2015

Estive no lugar onde se não morre

Estive no lugar onde se não morre.
Conheci um pintor pintado por um funâmbulo 
E uma espécie de seiva suprema 
Das palavras que fazem ver .

Cheio de minúcias panadas
Acordei sobre o abismo humano
e das astúcias de animais mortos.
Abri a janela do quarto 
Portugal dorme
E a utopia inquieta 
O país do Fim



Paulo Anes

25/08/2015

Um sonho cego a nada

Prometemos
Que teríamos em comum,
Não sermos dois, apenas um;
Que as nossas almas nuas,
Viciadas na bruma,
Não fossem duas
Apenas uma.

Prometemos
Um sonho para lá do aterro,
Um sonho sem medo,
Um sonho semente enraizada,
Um sonho cego a nada.


Um sonho, apenas um…
Um sonho realizado por nenhum.


Paulo Anes

24/08/2015

A Deus

Meu Deus...o que me acolheu
À vida sem propósito?
Mestre... a morte que me deu
É auto de depósito?

Sou português, mareado,
Aceitador de tudo,
Amador mundo e mudo.
E que ao ser amado...
Ui... lento é o fazer,
Ir é Ser.

Sou português, desenrascado,
Impotência em plena satisfação,
E Deus, que é o Fado,
Dá-me a mão.


Paulo Anes




21/05/2015

Há em mim uma voz …

Há em mim uma voz inclusa
Que protesta em favor do futuro.
E juro,
A sós,
Juro ao coração,
Que, essa, é a voz
Que me leva pela mão.


Paulo Anes

18/05/2015

Grito como águas sem lugar

Há na saudade pungente
Uma ferida, um desejo,
Uma giesta, um beijo,
Sem tentação que o tente,

Uma seara apagão,
Uma só ténue lembrança,
Berço-eira em comunhão,
Que não passa da esperança.

E na saudade agonia,
Onde eu vivera ou vivia,
Em movimento de fado,
Corre uma dor lancinante 
Que embala a todo o instante
Como um ferrão tresloucado,
A ausência de ti em tudo
Mesmo do que é recordado.


Paulo Anes

11/05/2015

Há dias assim

Há dias assim,
Em que não me deixo levar
Pelas ondas de um mar
Qualquer,
Nem sequer
Me deixo ir
Para além de Alenquer
Ou de Alcácer Quibir.

Há dias assim,
Em que não me deixo viver
Sem mim.


Paulo Anes

10/05/2015

Memento Homo

Assisto à marcha do espírito,
A este andar parado
Que caminha comigo
Por uma espiral adentro,
Agarrado
A um corrimão em busca
Do centro.

Sempre no cais de uma
Partida qualquer,
Sempre diante de uma mala
Por fazer.
E entre dois copos de vinho
Consigo trazer,
Já de voz arrastada,
Uns irónicos balanços
De toda a vida passada.

Para onde vou
Não sei,
Bardamerda para o que sonhei.


Paulo Anes